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Ana Beatriz Manzanilla, violinista da Orquestra Gulbenkian, professora de Violino na ESML

in Da Capo, 28 Fevreiro 2016 / artigo online

Quando a revista Da Capo me lançou o desafio de escrever um artigo sobre um tema livre relacionado com a música, não hesitei em escrever sobre um tema que muito me apaixona, provavelmente por ter sido formada no seio do El Sistema, na minha terra natal, a Venezuela. Esse tema está relacionado com os jovens, com a maneira como devemos trabalhar com eles, com as oportunidades que devemos criar para eles e, também, com aquilo que eu penso dever ser a formação de um músico completo.. Aproveitámos o anúncio do concerto da Camerata Atlântica na Fundação Calouste Gulbenkian no próximo dia 12 de Novembro e falámos com a sua fundadora.

Não é segredo felizmente para ninguém que o nível musical em Portugal nos últimos anos tem evoluído de forma impressionante, e hoje em dia contamos com músicos portugueses em lugares de destaque nas principais orquestras portuguesas e também pela Europa fora em orquestras de nível mundial, facto que nos deixa a todos os que somos ou nos consideramos portugueses imensamente felizes. Mas será que já se atingiu o limite desejável e que podemos descansar? De modo algum. É certo que o trabalho que foi feito até agora tem dado excelentes frutos, mas nunca se deve descansar, há que inovar, há que criar plataformas e condições para que os nossos músicos mais novos em breve consigam superar os músicos que hoje em dia destacam.

Acredito que o trabalho desde a infância pode ser sempre mais dinâmico para captar desde muito cedo a atenção da criança, a vontade de continuar a estudar música. Naturalmente sou suspeita, pois acredito que a integração dos alunos em orquestras infantis formadas nas próprias escolas contribui definitivamente para o desejo de frequentar a escola ou o conservatório de música, e cabe a nós, os professores, criar essas condições. Hoje em dia já há muita música especialmente concebida para estes pequenos grupos, mas também podemos ser nós próprios a fazer arranjos específicos para os instrumentos que possui cada orquestra.

Muitas vezes, enquanto esperava pelos meus filhos na escola de música, observava a grande quantidade de crianças que a frequentavam: de todas elas, quantas acabariam mesmo os estudos musicais? Quantas acabariam por dedicar a sua vida à música? A percentagem é ainda muito pequena, e neste momento pergunto-me: porquê? Por que razão? A resposta estará do nosso lado, dos professores, da própria escola, por, de alguma maneira, não sabermos fomentar a paixão pela música nas crianças?

Certamente a responsabilidade não será toda da escola, pois todos sabemos que os pais, a família, também têm um papel primordial nesta escolha. Não é por acaso que, em entrevista a músicos, a típica resposta à pergunta: por que é que escolheste estudar música? a resposta, muitas vezes, ou quase sempre, é: os meus pais gostam muito de música, ou a minha mãe sempre sonhou ter um filho pianista, etc.O envolvimento da família com a escola e as actividades que realiza o filho são decisivas para a continuação ou não dos estudos musicais, pois nós, os pais, gostamos de ver os nossos filhos motivados e contentes com o que fazem e aí, sim, a escola desempenha um papel fundamental.

A prática da música em conjunto deve ser desenvolvida o mais cedo possível, na minha opinião logo no início, para acelerar o envolvimento do aluno com o novo instrumento, com a escola e os colegas, e, como referi anteriormente, já existe repertório musical para todos os níveis e instrumentações. Caso contrário, é sempre possível adaptar melodias infantis ao grupo com o qual vamos trabalhar.

A maioria das escolas de música tem as suas pequenas orquestras, e eu acredito que será nessas pequenas orquestras que a criança vai desenvolver uma sã competência, vai querer tocar melhor que o colega da estante, vai superar as dificuldades que a partitura contém e, sobre tudo, vai sentir o prazer de fazer música em conjunto. Por vezes, nos grandes tuttis de alguma sinfonia eu própria me surpreendo na Orquestra Gulbenkian ao sentir ainda esse “bichinho” que sentia quando, com os meus 8 ou 9 anos, tocava a 5 Sinfonia de Beethoven, a abertura Mestres Cantores de Wagner, a abertura do Guilherme Tell ou o Romeu e Julieta de Tchaikosvki, partituras que guardo de cor na minha mente e, certamente, no meu coração.

É igualmente importante que o professor incumbido da orquestra nestas idades, mais que um bom maestro, seja um bom animador, alguém com carisma, que saiba trabalhar de maneira dinâmica para não perder a atenção das crianças, e que nunca se esqueça de que estas sabem sempre distinguir quando algo está bem feito ou mal feito. A escolha do repertório é de importância suprema. Não é por acaso que o fundador do El Sistema, José António Abreu, apostou nas orquestras juvenis nos grandes mestres russos. Quem não se apaixonaria pelo segundo andamento da 5 Sinfonia de Tchaikovski ou pela abertura do Romeu e Julieta? São as idades dos primeiros namoros, e certamente a música joga um papel importantíssimo. Este tema da escolha do repertório pode motivar ou não as crianças e os jovens. Hoje em dia, felizmente, existem cada vez mais estágios de orquestras para jovens, onde podem ter a oportunidade de trabalhar com professores experientes e, mais importante ainda, onde podem ter a oportunidade de conhecer repertório antes de entrar em numa orquestra profissional. Por exemplo, será sempre mais fácil para um trompista executar um solo importante nestas jovens orquestras que estrear numa orquestra profissional.

Esta foi a marca do El Sistema na Venezuela: quando um músico chega aos vinte anos de idade pode dizer que já tem, pelo menos, oito anos de experiência a tocar sinfonias de grandes compositores e até muita experiência de ter tocado a solo um concerto com orquestra.

Esta será outra questão importante na formação de um músico, ter estruturas que permitam passar pela experiência de tocar a solo com uma orquestra pois, ao fazê-lo, como músico fica mais completo e pronto para assumir esta responsabilidade quando se tornar um músico profissional. Hoje em dia, na minha opinião, ainda são poucas as oportunidades que se brindam aos jovens, um músico faz-se no palco e não só na sala de aula de uma escola. Tocar um concerto com acompanhamento de piano não permite ao aluno experienciar o som que deve ter quando é acompanhado com uma orquestra. Todos sabemos que muita coisa muda no caso de se ser acompanhado por uma orquestra, pelo menos no que diz respeito aos instrumentos de corda: é possível ter de mudar-se algumas arcadas para se obter mais som, ou os “tempi”, pois uma orquestra tem outro peso na reposta, e todos estes pormenores só se aprendem com a experiência do próprio palco. É por isso que é tão importante que as instituições competentes proporcionem estas oportunidades, as orquestras das escolas, as orquestras jovens e, por último, as orquestras profissionais. Insisto na importância de se começar a tocar a solo o mais cedo possível, que seja parte do crescimento como pessoa e como músico, e não esperar pelos 23 anos para se tocar pela primeira vez com uma orquestra.

Falei aqui da importância de tocar em orquestra na formação de um músico, bem como da experiência de tocar a solo acompanhado por uma orquestra. Também é muito importante, e neste caso a questão logística é bem menos complicada, tocar recitais com piano, pois não precisamos de contar com uma orquestra. Neste caso as escolas costumam organizar recitais e audições, o que é muito positivo, e contamos com muito repertório que pode ser interpretado por todo o tipo de instrumentos. Também é importante sair das escolas, mostrar o trabalho dos alunos em palcos de concerto, e isto, devo dizer, já está a ser feito por muitas instituições, o que tem elevado o nível dos nossos músicos.

E, por último e não menos importante, será a prática de música de câmara, pois reunir com outros colegas cria laços de amizade, troca de opiniões musicais e,obviamente, uma aprendizagem de repertório, de estilos diversos. Felizmente, o leque é muito variado, desde duos, trios, quartetos, quintetos, só cordas, com piano, com sopros, etc.

Todas estas atividades por mim descritas neste artigo, na minha opinião, fazem de um instrumentista um músico mais completo, pois cada modalidade tem as suas próprias características que, certamente, ajudam a elevar o seu nível técnico e musical.

Para concluir, gostaria de deixar uma mensagem a todos os jovens músicos. Certamente hoje as ferramentas que estão ao seu dispor são quase infinitas e devem ser aproveitadas ao máximo, falo da Internet, das redes socias, dos voos low cost, o mundo hoje está ao alcance de todos e, por conseguinte, não devem limitar os vossos sonhos. Hoje nada é impossível, os mitos acabaram, sempre com o estudo e a preparação podem sonhar com qualquer objetivo com a certeza de que podem alcançá-lo.

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